13 de fevereiro de 2008

Vaca Sagrada

Por Ed René Kivitz

De acordo com as Nações Unidas, cerca de 830 milhões de pessoas no mundo passam fome. Destas, pelo menos um terço vivem na Índia, isto é, um contingente aproximado de 250 milhões de pessoas. Curiosamente, pastam livremente pela Índia aproximadamente duzentos e cinqüenta milhões de vacas, respeitadas, cuidadas e veneradas por setecentos e cinqüenta milhões de pessoas de crença Hindu. Resumo da ópera: as pessoas podem morrer, mas nas vacas ninguém toca.


Esta é a razão porque a expressão “vaca sagrada” indica algo imexível, independentemente das circunstâncias (e até mesmo em situações que contrariam o bom senso: o que pode valer mais que a vida humana? um deus que exige culto às custas de vidas humanas ainda pode ser chamado deus?) Mas isso é para outra discussão. O que pretendo mesmo é abordar algumas “vacas sagradas” dos evangélicos com quem convivo mais de perto (imagino que você conheça muitos deles, ou, quem sabe, seja um deles).


Pretendo discorrer a respeito de alguns “vocábulos vacas sagradas”, que sustentam conceitos que permanecem intocados apesar de sua nítida obsolescência ou falta de fundamentação bíblico-teológica.



#1 CONTINGÊNCIA

Contingência. Do lat. contingentìa,ae: acidente, acaso

Acepções:

. caráter do que é contingente;

. possibilidade de que alguma coisa aconteça ou não;

. fato imprevisível ou fortuito que escapa ao controle; eventualidade;

. caráter do que ocorre de maneira eventual, circunstancial, sem necessidade, pois poderia ter acontecido de maneira diferente ou simplesmente não ter acontecido.


Na verdade, começo me corrigindo e me desculpando. O primeiro “vocábulo vaca sagrada” é justamente um que não existe no senso comum do pensamento evangélico, a saber: contingência. A maioria dos evangélicos com quem convivo não lida bem com a idéia de que algumas coisas acontecem sem que exista uma razão para que tenham acontecido. É quase impossível um evangélico explicar um evento com palavras como acaso, aleatoriedade, ou simplesmente contingência, especialmente quando estes acontecimentos são trágicos e impingem sofrimento.


Caso alguém em lágrimas perguntasse “por que isso aconteceu comigo?” e eu respondesse “não necessariamente por alguma razão específica, isso aconteceu porque aconteceu, e inclusive poderia não ter acontecido”, posso imaginar o que um evangélico provavelmente diria como réplica: “Não é possível, Deus tem um propósito por trás disso; isso aconteceu porque Deus quer fazer ou está fazendo alguma coisa. Você não entende agora, mas Deus sabe o que faz”.


De fato, a maioria dos evangélicos não perguntaria “por que isso aconteceu comigo?”, mas “por que Deus deixou isso acontecer comigo?”, partindo do princípio que Deus está necessariamente atuando como causa do evento em questão. Tudo o que acontece se explica de uma entre duas maneiras: ou Deus fez de propósito ou deixou que acontecesse de propósito. O que importa na explicação é o “de propósito”. Teologicamente, estão aí presentes os conceitos de vontade soberana (fez de propósito) e vontade permissiva (deixou acontecer de propósito) de Deus. Na cosmovisão da maioria dos evangélicos não existe contingência. Tudo acontece por uma razão que existe a priori: se aconteceu é porque tinha que acontecer, e Deus queria que acontecesse. Para consolar as pessoas diante de acontecimentos trágicos, vem a famosa citação de Paulo, apóstolo: “Todas as coisas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus”.


Para piorar a situação, não bastavam os hipercalvinistas, defensores do determinismo teológico, temos também o determinismo científico. Os calvinistas diziam (dizem) que tudo acontece por uma razão ordenada por Deus. Os cientistas afirmam que tudo acontece por uma razão porque o universo obedece a uma lógica inexorável de causa e efeito: está calor porque isso e aquilo, as leis da física explicam; você gosta de sorvete de limão porque isso e aquilo, Freud explica.


Em um universo onde não existe contingência, a liberdade é uma ilusão. Você faz o que faz porque alguma coisa maior e anterior que você assim desejou, e você não pode mudar o futuro, pois, mesmo que pense que está fazendo o que está fazendo porque livremente escolheu fazer, sempre que estiver agindo estará obedecendo a esta força anterior e ou superior. O que aconteceu, aconteceu porque tinha que acontecer: ou Deus quis e ou permitiu, ou as leis (físicas, biológicas, psíquicas, econômicas, sociológicas, e outras tantas) que atuam na realidade encaminharam as coisas no rumo que tomaram.


Creio que (1) muita coisa acontece sem qualquer razão específica a priori; (2) muita acontece porque Deus determina que aconteçam; (3) muita coisa acontece porque as leis que regem a realidade assim determinam; (4) muita coisa acontece porque eu quis que acontecessem; (5) muita coisa acontece sem que eu seja capaz de explicar porque acontece. Admito que na maioria das vezes não sou capaz de identificar as causas dos acontecimentos, e na verdade, ninguém é capaz de relacionar eventos e causas com exatidão. Creio que Deus não é a causa de tudo o que acontece. Creio que acontecem coisas que Deus não queria que acontecessem. E creio também que acontecessem coisas porque Deus decidiu não se meter na maioria dos eventos que se desenrolam no palco da história.


Pessoalmente não teria qualquer problema se Deus me explicasse um acontecimento dizendo: “Aconteceu porque aconteceu, não havia qualquer razão para acontecesse como aconteceu, poderia inclusive ter acontecido diferente, e Eu não tive nada a ver com isso”. No meu vocabulário existe a palavra "contingência". A vaca “propósito divino a priori para tudo o que acontece” na minha cabeça e no meu coração já virou churrasco.


[FONTE: Galilea]

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