4 de setembro de 2007

Entre feiticeiros e químicos, cientistas e filósofos, gramáticos e poetas

Por Ricardo Gondim


Infelizmente o mundo continua dividido entre feiticeiros e químicos, cientistas e filósofos, gramáticos e poetas. Digo infelizmente porque não foi sempre assim.

Houve um tempo em que os astrônomos se enamoravam pelo piscar das estrelas, os físicos acreditavam que uma linda bordadeira havia costurado o universo e os biólogos celebravam que o ser humano respirasse, mesmo tendo sido um boneco de barro.

Houve um tempo em que os jumentos falavam, as estéreis geravam filhos (extra)ordinários, os anjos matavam milhares de soldados agressores, os cajados secos floresciam e o sol parava para esperar que os mais frágeis prevalecessem na guerra.

Houve um tempo em que as fadas ajudavam as órfãs, o beijo do príncipe ressuscitava a princesa do sono, os espelhos se rebelavam para responderem com honestidade, e as crianças talhadas em madeira viravam gente.

Houve um tempo em que a metáfora reinava na literatura. A copa das árvores era um cálice verde de onde respingava o orvalho da manhã; a saudade, uma mulher que arrumava o quarto do filho que já tinha morrido; e a alma da lua se escondia na garganta do galo que soluçava seu canto na madrugada.

Houve um tempo em que falar de Deus era como suspirar, usar o olfato ou o paladar.

Naquele tempo encontrávamos o colo materno, perdido desde a adolescência. Deus era um pastor solitário que, sentado numa pedra, espiava suas ovelhas a pastar numa montanha distante; era o amante que abandonava um harém para cortejar sua amada; era o juiz que assumia a briga dos mais frágeis; era o médico que trazia um bálsamo para aliviar a dor da alma; era o amigo que se achegava como irmão; era o rei que anunciava a chegada de uma nova ordem; era o pai que educava seus filhos para uma existência madura e autônoma.

Houve um tempo em que se liam os textos sagrados com reverência. Diante do numinoso, o mortal tremia; diante do sagrado, o pecador temia; diante do infinito, o finito se perdia, diante do eterno, o humano se encolhia.

Lentamente, teólogos e exegetas, cientistas e técnicos, gramáticos e lingüistas, minaram os sonhos e as fantasias dos meninos, esvaziaram a verdade dos poetas, quiseram explicar o mistério, captar a verdade, sistematizar Deus, dissecar o poema e criticar a alegoria. E conseguiram! Eles exilaram os magos que correm atrás das estrelas; sumiram com os profetas alucinados que falam de rodas de fogo no céu; queimaram as mulheres que sentem no corpo o êxtase do divino. No ímpeto de explicar o impossível e mapear os rumos do Espírito, esses assassinos da beleza deixaram o mundo mais pobre, a fé mais segura, a oração menos incerta — e Deus ficou pequeno.

Agora, quando se precisar de milagre, pode-se dispor de hábeis evangelistas que ajudam a abrir as janelas do céu; quando houver dúvidas, pode-se comprar exaustivos manuais sobre Deus; quando a vida parecer ameaçadora, é possível domesticá-la, contratando profetas de aluguel.

Minha alma, porém, anseia pela poesia que me abandone reticente; pela prosa que me ferva o sangue; pela ficção que me comova as entranhas; pelo drama que me arrepie a pele; pelos personagens que saltem dos palcos para encarnar em mim.

Sinto que Deus ainda vive no sonho das crianças; ainda habita onde reside a musa do poeta; ainda se revela no desejo do profeta; ainda se move além do horizonte utópico do guerreiro. Sinto que sua habitação fica no vazio, no nada, e que sua glória se esconde numa nuvem espessa e ofuscante. Sinto que posso perceber sua verdade no desconhecido absoluto e, no inaudível, escutar sua voz. Sinto que Deus é vento imperceptível, verdade diáfana e mistério espantoso.

Portanto, morro para o anseio de fazer análise sintática ou crítica textual dos textos sagrados. Já não invejo os apologetas, só quero que me devolvam o que roubaram de mim: a alma dos poetas, o coração dos meninos e a leveza dos bailarinos.

Soli Deo Gloria.

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