22 de agosto de 2007

ALGUMA COISA ESTÁ MUITO ERRADA

Por Brennan Manning


Em uma noite tempestuosa de outubro, numa igreja nos arredores de Mineápolis, centenas de cristãos se reuniram para um seminário de três dias. Comecei com uma apresentação de uma hora sobre o evangelho da graça e a realidade da salvação. Usando a Escritura, histórias, simbolismo e experiência pessoal, enfoquei a completa suficiência da obra redentora de Jesus Cristo no Calvário. O culto terminou com um cântico e uma oração. Deixando a igreja por uma porta lateral, o pastor e seu auxiliar espumavam de raiva.

—_ Humph, aquele cabeça-oca não disse nada sobre o que temos de fazer para ganhar a salvação! — disse o pastor.
—_ Alguma coisa está muito errada — disse o auxiliar em tom de concordância.

Dobrando-se aos poderes deste mundo, a mente deformou o evangelho da graça em cativeiro religioso e distorceu a imagem de Deus à forma de um guarda-livros eterno e cabeça-dura. A comunidade cristã lembra uma bolsa de obras de Wall Street, na qual a elite é honrada e os comuns ignorados. O amor é reprimido, a liberdade acorrentada e o cinto de segurança da justiça-própria devidamente apertado. A igreja institucional tornou-se alguém que inflige feridas nos que curam, em vez de ser alguém que cura os feridos.

Dito sem rodeios: a igreja evangélica dos nossos dias aceita a graça na teoria, mas nega-a na prática. Dizemos acreditar que a estrutura mais fundamental da realidade é a graça, não as obras mas nossa vida refuta a nossa fé. De modo geral o evangelho da graça não é proclamado, nem compreendido, nem vivido. Um número grande demais de cristãos vive na casa do temor e não na casa do amor.

Nossa cultura tornou a palavra graça impossível de compreender. Repercutimos frases de efeito como:
"“Nesta vida nada é de graça”."
"“Cada um acaba ganhando o que merece”."
"“Quer dinheiro? Vá trabalhar”."
"“Quer amor? Faça por merecer”."
“"Quer misericórdia? Mostre que é digno dela”."
"“Faça aos outros antes que lhe façam”."
"“Observe as filas nos órgãos assistenciais, os mendigos preguiçosos nas ruas, a merenda grátis nas escolas, os estudantes ricos com bolsas do governo: só os trapaceiros se dão bem”."
"“Sem dúvida, dê a cada um o que merece — e nem um centavo a mais”."

Minha editora na Revell contou-me que ouviu certa vez um pastor dizendo a uma criança: “Deus ama os bons meninos”. À medida que ouço sermões com ênfase definida no esforço pessoal toma lá, dá cá — fico com a impressão que uma espiritualidade “faça-você-mesmo” é a nova onda americana.

Embora as Escrituras insistam que é de Deus a iniciativa na obra da salvação — que pela graça somos salvos, que é o Formidável Amante quem toma a iniciativa — freqüentemente nossa espiritualidade começa no eu, não em Deus. A responsabilidade pessoal substituiu a resposta pessoal. Falamos sobre adquirir a virtude como se ela fosse uma habilidade que pudesse ser desenvolvida, como uma bela caligrafia ou um bom gingado numa tacada de golfe.

Nas épocas de penitência, nosso foco é superar nossas fraquezas, livrarmo-nos de nossos entraves e alcançarmos a maturidade cristã. Transpiramos debaixo de diversos exercícios espirituais como se eles fossem concebidos para produzir um Mister Universo cristão.

Embora algum elogio nominal seja dirigido ao evangelho da graça, muitos cristãos vivem como se fossem apenas a sua disciplina pessoal e sua autonegação que deverão moldar o perfeito eu. A ênfase é no que eu estou fazendo em vez de no que Deus está fazendo. Nesse processo curioso, Deus é um espectador velhinho e benigno que está ali para torcer quando compareço para minha meditação matinal. Transferimos a lenda de Horatio Alger* sobre o homem que venceu pelos seus próprios esforços, o self-made man, para nosso relacionamento com Deus. Quando lemos no salmo 123:
“"Como os olhos dos servos estão fitos nas mãos dos seus senhores, e os olhos da serva, na mão de sua senhora”", experimentamos uma vaga sensação de culpa existencial. Nossos olhos não estão fitos em Deus. No fundo somos pelagianos* * praticantes. Cremos que somos capazes de nos erguermos do chão puxando nossos próprios cadarços — que somos, de fato, capazes de fazê-lo sozinhos.

Mais cedo ou mais tarde somos confrontados com a dolorosa verdade da nossa inadequação e da nossa insuficiência. Nossa segurança é esmagada e nossos cadarços, cortados. Uma vez que o fervor passa, a fraqueza e a infidelidade aparecem. Descobrimos nossa incapacidade de acrescentar uma polegada que seja a nossa estatura espiritual. Começa então um longo inverno de descontentamento que, eventualmente, floresce em depressão, pessimismo e um desespero sutil: sutil porque permanece não-diagnosticado e não-percebido, e, portanto, não-confrontado. Ela assume a forma de tédio e trabalho forçado. Somos esmagados pela normalidade da vida, pelas tarefas diárias executadas à exaustão.

Secretamente admitimos que o chamado de Jesus é exigente demais, que a entrega ao Espírito Santo está além do nosso alcance. Passamos a agir como todo mundo. A vida assume uma qualidade vazia e desprovida de contentamento. Começamos a lembrar o personagem principal na peça de Eugene O’Neill O Grande Deus Brown: “Por que tenho medo de dançar, eu que amo a música e o ritmo e a graça e a canção e o riso? Por que tenho medo de viver, eu que amo a vida e a beleza da carne e as cores vivas da terra e o céu e o mar? Por que tenho medo de amar, eu que amo o amor?”

*Autor americano que escreveu entre 1860 e 1899 dezenas de romances populares sobre meninos pobres que alcançavam a respeitabilidade através de engenhosidade e de trabalho duro. (N. do T.)

**Seguidores de Pelágio (c. 400 d.C.), que colocava o livre-arbítrio humano acima da iniciativa de Deus e ensinava que cada cristão deveria conquistar a salvação pela conduta meritória voluntária. (N. do T).

(texto extraído do livro O Evangelho Maltrapilho)

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